13/08/2010 09h52min | Susana Sarmiento Setor 3 – Senac – SP

“Eu fico triste, quando vejo criança embaixo da terra. Mas fico feliz, quando a vejo em pé brincando”, afirma Ayato Kuikuro, agente de saúde da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), um dos entrevistados do documentário Quebrando o Silêncio, lançado em março deste ano, em que apresenta histórias de sobreviventes do infanticídio indígena e de famílias que saíram das aldeias para salvar a vida de seus filhos.

O infanticídio ainda é uma prática existente em algumas aldeias indígenas do Brasil. Em geral, as vítimas são gêmeos, deficientes ou nascidos de relações instáveis, de acordo com crença de cada comunidade. Sandra Terena, jornalista e documentarista responsável por essa obra, ressalta que o objetivo principal é promover o debate sobre o tema entre os indígenas, e não influenciar sua cultura.

Em seu registro de nascimento fornecido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Sandra é Alyeté, que significa pessoa meiga. Seu avô é um dos fundadores da aldeia Icatu, onde veio sua família, da etnia terena, localizada no oeste paulista, próximo a região de Bauru e Araçatuba. Seu pai foi para a Curitiba (PR), aos 18 anos, para servir ao quartel. Lá conheceu a mãe de Sandra. “Vivi uma vida dupla na infância. Ora na cidade, ora na aldeia”, revela a jornalista.

Desde os 11 anos Sandra acompanha seu pai em movimentos indígenas. A jornalista participa de congressos, manifestações, reivindicações, encontros e outras ações. Aos 18, com dificuldades de financiar uma faculdade, Sandra recebeu uma bolsa de estudos da FUNAI para cursar jornalismo em uma universidade privada. “Agarrei essa oportunidade com todas as minhas forças. Pegava dez ônibus por dia para ir e voltar da universidade. Passei por algumas dificuldades”, lembra. Recentemente, fez ainda uma pós-graduação em Cinema na Pontifícia Universidade Católica. Atualmente ela é presidente da ONG Aldeia Brasil. Conheça o porquê da escolha do tema, a trajetória da edição e outras curiosidades sobre essa produção na entrevista abaixo:

Portal Setor3- Por que abordar o tema infanticídio indígena?
ST – Quando eu era pequena, o meu pai contava que há muito tempo havia o infanticídio. Pensava que essa prática era do passado. Soube que essa prática ainda existia, mas já tinha muitas famílias e, principalmente, mães que não queriam mais isso e, mesmo assim, sofriam com a perda de seus filhos. Eu sou mãe, e, ao imaginar o sofrimento dessas pessoas, cheguei a conclusão que eu deveria fazer alguma coisa, embora sem ter ideia de como poderia colaborar. O documentário foi uma forma que encontrei de trazer o assunto à tona nas comunidades para que o tema fosse debatido de forma aberta, com respeito e responsabilidade por quem sofre com essa prática.

Portal Setor3- Essa prática ainda é muito comum? Em quais comunidades em especial?
ST- Atualmente são, no mínimo, 20 povos que tem como hábito a prática do infanticídio. O filme mostra diversas comunidades na região do Xingu, por exemplo, podemos citar os kuikuro, kamayurá, waurá. Estou citando aleatoriamente, o que não quer dizer que essas etnias a praticam em maior número.

Portal Setor3- Em sua avaliação, por que essa prática acontece? Há alguma comunidade específica que defende tal ação?
ST- Sobre isso existem diversas teorias, como o fato de a permanência de uma criança considerada “amaldiçoada” trazer algum azar para a comunidade indígena, como o acontecimento de uma catástrofe natural, má sorte na colheita, ou na pesca, mas boa parte dessas teorias são conhecimentos que fazem parte da história oral. Em alguns povos, há 300 anos não era possível um filho de mãe solteira sobreviver, pois não haveria a figura do caçador, por exemplo. Por isso essa prática tinha um porquê. Hoje, existem outras formas de sobreviver que vão além da caça – uma atividade muito importante ao nosso povo. Dessa forma, muitas famílias entendem que não é mais preciso matar os seus filhos. Não encontrei uma comunidade específica que defendesse essa prática. Não posso falar por todos. Somos mais de 230 povos espalhados pelo Brasil. Mas posso falar pelo meu povo e pelos povos que tive a oportunidade de conversar. Existe uma parcela da população, principalmente entre os mais velhos, que resiste ao diálogo. No entanto a grande maioria das lideranças e mulheres está a favor da vida. O principal problema é conseguir políticas públicas para isso. Um cadeirante dificilmente viveria hoje em uma aldeia no alto Xingu. Uma criança que precisa fazer hemodiálise três vezes por semana sai muito caro aos cofres do governo. Então é fácil dizer: “Isso é da cultura, não vamos interferir”.

Portal Setor3- Como foi o processo de pesquisa desse tema? Quais foram as principais dificuldades? Como conseguiu conversar com 350 mulheres indígenas? Como você fazia a procura, por etnia? Como balancear os depoimentos?
ST- O documentário, antes de ser realizado, teve um extenso trabalho de pesquisa documental, bibliográfica e de campo nas aldeias, onde a gente tinha informação de que havia a prática do infanticídio. Por algumas aldeias serem bem afastadas de grandes centros urbanos, foi feito todo um planejamento logístico e com estrutura. Em todo o trabalho nos utilizamos dos recursos da metodologia científica para executarmos o documentário, isso nos permitiu analisar os riscos, e, ao mesmo tempo, nos deu mais confiança para viabilizar o projeto mesmo com pouco recurso. O trabalho todo foi possível, porque tivemos voluntários que prontamente se disponibilizaram a colaborar, doando recursos financeiros, tempo, talento e o seu trabalho. Na minha opinião, o documentário é resultado de todos os envolvidos acreditarem que esse trabalho poderia ser feito, e que daria certo e deu; e tem mostrado bons resultados.
Acredito que a principal dificuldade foi conseguir recursos para viabilizar o documentário, pois a execução do filme envolveu custos com os deslocamentos da equipe para as aldeias e para a casa das famílias de indígenas que moram na cidade. Também posso citar o cansaço físico, por conta da distância foi uma das dificuldades que enfrentamos. Para você ter uma idéia para eu chegar no Xingu, saí de Curitiba, fui para Brasília e de lá peguei um ônibus que iria até a cidade de Canarana, no Mato Grosso, essa viagem durou 15 horas, chegando lá percorremos mais duas horas de caminhonete até atingir a beira do rio Xingu, onde entramos num barco e fizemos mais um percurso de 10 horas pelo rio. Em relação ao ambiente não tive nenhuma surpresa, porque já estou acostumada a visitar várias aldeias indígenas. Foi bastante gratificante entrevistar as mulheres, elas foram muito atenciosas, mas, por outro lado, foi uma tarefa bastante trabalhosa visto que falamos com bastante gente. Foi muito difícil balancear os depoimentos, eles eram muito ricos, o que rendeu várias horas de fitas, mas procuramos alinhar o documentário no sentido de mostrar que o infanticídio existe e os efeitos colaterais que essa prática causa nas suas comunidades.

Portal Setor3- Em alguns depoimentos, smostraram críticas a ONGs, antropólogos, etc. Alguns indígenas afirmaram que esses profissionais não entendem a cultura indígena. De que forma os próprios indígenas podem ser protagonistas de suas mudanças, de sua valorização cultural?

ST- Para alcançarmos isso, acho que tudo passa pela educação. Muitas políticas públicas que dizem respeito ao índio caminham sempre com morosidade, e isso atrapalha. É preciso ter ensino de qualidade para as crianças. Elas precisam aprender a língua e a qualidade desse ensino precisa melhorar bastante. Tem casos de crianças, posso dizer aqui pelo Paraná, que passam dois ou três anos no ensino fundamental e acabam reprovando, porque não conseguem acompanhar. Há professores que fazem curso de capacitação para atuar nas escolas dentro das aldeias, mas esse trabalho precisa ser sempre avaliado para ver se o ensino está cumprindo com a necessidade. A partir do momento em que você conhece a sociedade e passa a entendê-la da mesma forma que ela, você consegue discutir de igual para igual.

Portal Setor3- Como se dá o processo de exibição desse documentário nas próprias comunidades indígenas? Como foi a escolha para exibir em 200 comunidades com ajuda da Atini – Voz pela Vida?
ST- Fiz questão da primeira exibição do filme ser realizado no Parque do Xingu, em um encontro de mulheres. Todos assistiram com muita atenção. As lideranças me respeitaram muito. Houve grande apoio dos povos que lá estavam. Houve ainda uma parcela de pessoas que se mostraram resistentes a questão. A ocasião foi bastante oportuna, porque tinha mulheres de mais de 10 povos, do baixo, médio e alto Xingu. Eu pude perceber que as mulheres falaram abertamente sobre o tema e elas esperam receber apoio que resulte em melhorias para se minimizar o sofrimento emocional e social em torno do infanticídio. Identifiquei que elas assistiram ao filme com atenção e não se sentiram lesadas ou ofendidas, até porque em todas as etapas do filme nos preocupamos muito com isso, de maneira alguma queríamos fazer algo que fosse provocativo, sensacionalista e que fizesse julgamento de valor com as comunidades documentadas. Também foi interessante ver que muitos ficaram felizes de se verem no vídeo e ao demonstrar preocupação no sentido de se encontrar uma solução para essa questão. Eu sei que o filme está rodando o Brasil, tanto nas aldeias, como em diversos setores da sociedade, eventos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e em exibições seguidas de debates nas universidades e emissoras de tevê. Para mim, isso é bastante positivo, porque, se há mobilização, mostra interesse pela causa e propor soluções que visem em melhorias para quem vivencia essa questão que são os indígenas que estão nas aldeias e para as famílias que hoje moram na cidade. O filme tem sido exibido em diversas aldeias de todo o Brasil e o objetivo é gerar discussão sobre o tema.

Portal Setor3- Quais resultados foram significativos com realização desse documentário?
ST- O filme também foi lançado em Brasília, no Memorial dos Povos Indígenas no dia 31/03. Por conta do lançamento e da relevância do tema, o filme tem tido uma divulgação na mídia, tanto no cenário nacional como local, inclusive repercussão na França. O filme está na internet, e no Youtube. Outro ponto favorável é que foi traduzido para o inglês e isso vai aumentar a divulgação no exterior. Creio que essas ferramentas de alguma forma vão ajudar a conseguir mais recursos para que possamos viabilizar a exibição, seguida de debate nas aldeias de todo o País. O filme também recebeu o Prêmio Jovem da Paz na categoria comunicação e Prêmio Voluntariado Transformador na categoria redução da mortalidade infantil. Os prêmios foram gratas surpresas. Estamos tão envolvidos com o trabalho que, às vezes, não temos tempo para pensar nisso. Nós sabíamos que havia um grande interesse público e relevância social nesse projeto. Esse reconhecimento certamente é muito importante. No entanto, esses prêmios não vão valer nada, se não atingirmos o objetivo que é exibir o filme pelas aldeias do Brasil, para que o nosso povo possa refletir sobre o infanticídio, para que políticas públicas saíam das nossas bases e das lideranças tradicionais das aldeias.

Serviço:
Título: Quebrando o Silêncio
Direção: Sandra Terena.
Roteiro: Sandra Terena, Oswaldo Eustáquio, André Barbosa e Christina Barbosa.
Produção: André Barbosa.
Narração: Sandra Terena.
Direção de fotografia: André Barbosa.
Edição: Sandra Terena e Christina Barbosa.
Finalização: André Barbosa.
Imagens adicionais: Enock Freire.
Imagens da reunião Parque Xingu: Gustavo Domingos.
Pesquisa: Edson Suzuki.
Apoio documental: Márcia Suzuki.
Som direto: André Barbosa e Kakatsa Kamayurá.
Tradutores: Cacique Aritana Yawalapiti (idioma “Yawalapiti”), Francisca Irving (idioma “Jarawara”), Kakatsa Kamayurá e Karatsipa Kamayurá (idioma “Kamayurá”).
Trilha sonora original: Marcos Vicente
Site:www.quebrandoosilencio.blog.br