INFANTICÍDIO NA FLORESTA

Brasília,segunda-feira, 15 de outubro de 2007 • CORREIO BRAZILIENSE
por Vallisney de Souza Oliveira
Editor: Josemar Dantas

A edição 2.021, de 15 de agosto de 2007, sob o título “Crimes na floresta”, a revista Veja relata casos acontecidos com os índios suruuarrás, semi-isolados do Amazonas, como o da indiazinha Hakani, que, por ter apresentado desde o nascimento problemas de saúde (hipotireoidismo congênito) foi condenada à morte pela tribo. O fato não se consumou porque os pais da criança, em vez de a envenenarem, eles próprios tomaram o veneno letal (timbó). Outras tentativas de matá-la ocorreram por ordem da tribo ao irmão mais velho de Hakani, que a atacou com porretes e a enterrou viva. Desenterrada por causa de seu insistente choro, o avô da criança deu-lhe uma flechada entre o ombro e o peito, mas, em seguida, ele próprio, se matou. Doente e rejeitada pela comunidade indígena, a menina somente sobreviveu por causa da intervenção de um casal de missionários, que a retirou de lá para tratamento em São Paulo e, posteriormente, a adotou.

De acordo com o teor da mesma reportagem, o infanticídio ainda é cometido por pelo menos treze tribos indígenas brasileiras, como os camaiurás, de Mato Grosso. Tem por finalidade aumentar as chances de sobrevivência do grupo contra os perigos da mata.

Se, por um lado, essa prática se justifica em razão da realidade dos povos da floresta, por outro, o ato de matar alguém em qualquer sociedade não pode ser concebível, porque viola direitos humanos indeclináveis.

A Constituição Brasileira, que tem a vida como o direito primordial, proíbe a pena de morte. Do mesmo modo, o Estatuto do Índio (art. 57 da Lei n° 6.0001/1971), tolera a aplicação, pelos grupos tribais, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não tenham caráter cruel ou infamante, sendo vedada em qualquer caso a pena de morte.

O infanticídio para o direito brasileiro é crime. Segundo o art. 123 do Código Penal, matar criança durante o parto ou logo após, com influência do estado puerperal (infanticídio), a pena é de detenção de dois a seis anos. Da mesma maneira, o homicídio (art. 121 do Código Penal) é crime dos mais reprováveis em nossa sociedade.

Tratando-se de tribos praticamente isoladas, como são provavelmente os suruuarrás, não pode haver aplicação da nossa lei penal para os atentados à vida. Os membros desses povos não possuem condições de saber que essa deletéria prática é contrária ao direito brasileiro. Em tais circunstâncias, aqueles índios provavelmente não possuem consciência de que se trata de delito tipificado no Código Penal, não sendo admissível, assim, impor sanções aos viventes daquelas comunidades isoladas, que não possuem a noção da ilicitude de seus atos.

Aliás, os índios isolados são inimputáveis. Mesmo se eventualmente, em alguma hipótese, fosse permitida a aplicação da legislação penal, deveria ser considerada ainda a regra disposta no art. 56 do Estatuto do Índio, segundo o qual, no caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.

Consoante o art. 10 da mesma Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada no Brasil por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, quando sanções penais são impostas a membros de alguns povos, devem ser levadas em conta suas características econômicas, sociais e culturais.

É até compreensível que alguns indígenas tenham como tradição a extinção de um de seus membros, deficiente ou doente, para poder enfrentarem as dificuldades naturais da floresta e os outros problemas ligados às suas condições sociais e geográficas adversas. Contudo, o infanticídio e qualquer outro delito de idêntica natureza contrariam o direito natural e fundamental do ser humano, que é o direito à vida.

* Publicado no Jornal Correio Braziliense, Suplemento “Direito & Justiça”, 15.10.2007, e na Revista Jurídica Consulex, n. 262, dezembro de 2007, p. 16. (VSO)