O Pajé de Cristo, de Homer E. Dowly, Ed. SEPAL, é um precioso registro da cultura e da visão de mundo dos uai-uai, tribo que habita a densa floresta amazônica. Logo no primeiro capítulo o livro confronta os leitores com o relato de um infanticídio. O então menino Eucá, jovem que viria a ser o pajé e líder de seu povo, aguarda ansiosamente o fim da gravidez de sua mãe e o nascimento de seu irmãozinho. Enquanto isso, tenta encontrar uma maneira de evitar que a criança tenha o mesmo destino da que nascera um ano antes e fora morta pelo próprio pai. Apenas a coragem e a determinação do pequeno Eucá podem poupar a vida dessa criança indefesa. Leia um trecho da história aqui.

Eucá pôde até ver Tumicá (seu padrasto) olhando com ar ameaçador para o nenê deitado onde nascera, no piso de terra da cabana-maternidade. Enquanto a criança permanecesse intocada, a morte por um pai raivoso era possível. Levantá-la do chão, entretanto, era salvá-la. O perigo de morte poderia ser afastado com esse simples gesto.
Eucá- lembrou-se do que Tumicá dissera aos uais-uais que testemunharam o nascimento: – Essa coisinha não deve ser levantada do chão.

Se alguém teve desejo de salvar a criança, nenhum se apresentou; todos tinham medo de Tumicá e foram embora, alguns murmurando uma vã ameça “para a próxima vez”, depois que Tumicá pqgou numa acha de lenha e deu, rapidamente, uma única pancada na criança recém-nascida.
Naquela noite Eucá chorou pela morte da criança que havia sido seu irmão durante tão curto tempo. Ele não teve o conforto de sua mãe que ainda permanecia sob o telhado triangular da cabana-maternidade com sua rede pendurada sob a rede do marido. Na casa grande ninguém pareceu importar-se com o choro de Eucá deitado em sua rede. A eles não imprtava que uma criança fora morta; tudo continuaria como de costume – tocariam suas flautas de madeira, fofocariam entre eles e ressonariam satisfeitos próximos do fogo tépido da noite. O ganido dos cachorros amarrados junto às cercas pareciam mais humanos que nunca naquela noite. Ao alvorecer Eucá pulou de sua rede, incapaz de, com seu desgosto, continuar deitado por mais tempo.

Com os últimos raios de uma lua que se ocultava, ele se introduziu furtivamente por uma clareira até um monte de palha atrás de um rancho de folhas construído fora da aldeia. Eucá esquadrinhou cuidadosamente o local ao seu redor até que achou algo que procurava. Pegando-o, então, correu para a cabana-maternidade. Pela luz opaca da fogueira viu Tumicá dormindo pesadaemnte. Eucá fixou nele os olhos longamente, furioso em tudo o que veio para fora foi um soluço, mas isso foi suficiente para liberar um fluxo de palabras e depois uma torrente de gritos de dor:

– Ele o matou! Ele o matou! Por que ele matou meu irmãozinho? – O rapaz vociferou sua acusação, não diretamente ao seu padrasto, mas todos sabiam o que aquele gesto ousado e as palavras cortantes significavam. Um menino não ousaria ser mais direto.

Tumicá acordou num instante. Sentou-se, revirou-se em sua rede balançando os pés para fora. Esfregando os olhos, percebeu que estivera dormindo, mas na luz fraca viu Eucá segurando nos braços seu irmão morto.

– Guicha! (Droga!) – ele praguejou, cuspindo no chão com repugnância. – Por que você trouxe esse morto aqui?

– Ele o matou! – repetiu Eucá.

Na rede mais baixa, a mãe insone, que em silêncio vigiava, e tinha visto seu filho entrar, sentiu que chegara a hora de falar.

– Meu filho gostaria de ter um irmão.

Com um movimento rápido, Tumicá pulou de sua rede e arrebatou o corpo frio dos braços de Eucá.

– Ele quer um irmão? – perguntou enraivecido. – Deixe que ele tome uma sucuri por irmão e que ela o abrace! Eu enterrarei esta coisinha. Então ele terá um irmão debaixo do lixo.
Tumicá puxou uma grande faca do teto e saiu com indiferença a fim de cavar uma sepultura.
Eucá voltou lentamente para a casa grande. Aqueles que conversavam agora estavams sonolentos; as flautas silenciaram. Os cachorros da aldeia ainda rosnavam e ganiam quando as pulgas os picavam. Eucá subiu em sua rede.

Já despontava a aurora antes que o sono fechasse seu olhos em lágrimas.

(…)

Antes de alcançar a clareira, (Eucá) ouviu o latido dos cahorros em coro, dizendo-lhe que a aldeia estava acordada.

Passando rapidamente pela clareira da aldeia, viu outro sinal de atividade matutina. Da casa grande e redonda com teto cônico, a fumaça de muitas fogueiras preparando comida pairava opressivamente sobre a morada rústic e sem janelas. Eucá correu em direção a sua simples e sombria abertura, contornando as vísceras de um porco-do-mato que premaneciam amontoadas, deixadas por alguém que as cortara no dia anterior e que agora estavam cobertas de moscas e formigas carnívoras. Seus pés descalços endurecidos não sentiram os cacos de cerâmica e de cuias de cabaça quebradas. Ele mal notara os homens sentados em seus banquinhos lavrados, penteando seus cabelos longos até a cintura ou amarrando-os como caudas ou pintando de vermelho desenhos em suas faces com óleo e semtne de urucum, e fazendo seu contorno com fuligem. Eucá se esquivou de duas ou três mulheres que passaram correndo pela clareira com potes de bebida de mandioca ou encurvadas com lenha nas costas – muito ocupadas para terem cuidado com sua aparência, senão o de prender suas tangas com pequenas miçangas coloridas. Uma delas tinha puxado seu cabelo para trás num coque; as outras deixaram os seus soltos e desalinhados.

Quando Eucá se aproximou da casa grande, seus olhos dardejaram na cabana-maternidade na orla da clareira. Ele podia perceber as imagens sombrias das pessoas sob o abrigo, mas não o que elas estavam fazendo. Um grito repentino lhe indicou, então, que ele chegara a tempo.

– Achi! (Grande Irmã!) – gritou Eucá em pânico. Uma mulher mais velha enfiou a cabeça pela porta de entrada e o rapaz deixando cair o peixe diante de seus olhos arregalados, correu para a cabana.

Um choro alto! O nenê tinha nascido. Seria seu padastro aquele homem encurvado sobre a pequenina figura no chão? Estaria ele prestes a golpeá-la ou já teria desferido o golpe fatal? Estaria Tumicá até agora olhando para a obra maligna de suas mãos? Como Eucá gostaria de ter vindo mais rápido!

O choro se ouviu outra vez – a criança não havia recebido ainda nenhum golpe. Se pelo menos o bebê continuasse chorando…

Eucá se deteve um pouco na entrada da cabana, com seus olhos observando a cena sob o teto de folhas. Ele viu sua mãe, ainda trêmula pela prova penos, agarrando o trançado de madeira no qual se agarrara, desesperada ao dar à luz. Amparando-a esteve a velha vovõ da aldeia. Eucánotou a poucos passos deles uma garotinha, a sua irmã, e ao lado dela Tumicá, que delicado se inclinava para a frente, parecendo enlevado por alguma coisa que estava aos pés de sua mulher. Eucá acompanhou sua contemplação, e diante de sua mãe estava deitado um menino rosado, dando pontapés e chorando sobre as folhas de bananeiras manchadas de vermelho.
Eucá tinha um irmão! Era um belo menino, Eucá pode ver, apesar da quantidade de sangue que cobria a criança. O dente afiado do porco-do-mato estava no chão por perto, mas ninguém o usara ainda para cortar o cordão umbilida. O bebê não tinha sido levantado do chão. Eucá sabia que ele continuava sobre a ameça da vontade assassina de Tumicá.

Ele olhou rapidamente para sua mãe, cujos olhos estavam fechados de dor, e para sua irmã que permanecia imóvel, olhando diretamente para o bebê. A velha vovozinha olhou fixamente para o bebê, murmurando com ódio, mas não se moveu. Eucá não precisava olhar outra vez para Tumicá a fim de saber que por causa dele ninguém se movia para levantar o bebê. Eucá sabia do ódio que aquele rosto exprimia sem ter de fitá-lo novamente.

– Eu matarei a coisinha, murmurou Tumicá para ninguém em particular, ficando furioso. Há muitos de nós nesta aldeia. O povo anda comentado e dizendo: “Olhem para o velho Tumicá. Ele está proliferando como a castanha do Pará”. Comentários como este soam mal em meus ouvidos..
Então Tumicá não se importava com o que o povo pensava e dizia? Esse silêncio soturno importava e eles os odiava por isso.

A mãe de Eucá abriu os olhos e olhou para Tumicá. A irmã de Eucá também voltou-se para vigiá-lo enquanto ele se enfurecia. Mas os olhos de Eucá eram só para seu irmão recém-nascido e seus ouvidos somente para o choro iminente do bebê. A cena diante dele – o nenê molhado e desamparado – nadava loucamente em suas lágrimas. Uma vez Eucá fora atirado de uma canoa contra as águas agitadas, sem saber nem onde estava, se perto da superfício ou no fundo do rio. Ele sentia o mesmo agora. Por que eles não levantavam logo o bebê do chão?

Quem poderia proteger seu irmãozinho? Ele podia – mas um menino não levantava bebês do chão para salvá-los. Havia, entretando, uma coisa que ele podia fazer: Eucá podia proteger o corpo de seu irmão da pancada que sabia estar prestes a acontecer. Com um pulo repentino e rápido como sua armadilha para peixe quando a isca era mordida. Eucá colocou-se adiante de seu padastro arengueiro e a criança. Eucá caiu sobre seus joelhos e colocou suas mãos na pequenina face. Espantado com essa ousadia, Tumicá interrompeu seu palavrório afetado. Eucáencostou o peito nu naquela pele cor-de-rosa. Ela estava morna, bem morna, e em nada parecida com o corpo frio e pegajoso que ele tinha aninhado em seus braços um ano antes. Recuando para contemplar seu irmão, deixou cair uma lágrima no pequeno peito. O choro do bebê parou por um instante. No breve silêncio Eucá sorriu para o seu irmão, e enquanto o fazia, sua boca aparou e experimento uma lágrima. Ele olhou para sua mãe, todo seu corpo tremia com soluços.

– Mãe, eu quero meu irmão! Não quero que ele morra!

Seus olhos suplicavam o que ele não ousava dizer: “Não posso levantá-lo do chão?”

Tumicá continuava imóvel, meio agachado e congelado pela audácia de Eucá. Quando se moveu, furioso, deu passos largos em direção à dupla no chão e encurvou-se sobre eles. Tumicá levantou seus braços, apertando seus punhos.

– Você não quer que ele morra… – disse imitando Eucá. Os lábios de Tumicá mal podiam formar as palavras que vinham de sua garganta. – Acaricie-o! Acaricie-o o quanto puder! Você não o terá por muito tempo. Vou matar essa coisa insignificante! – sua voz se elevou para gritos nas últimas palavras. Os gritos loucos continuaram por toda a aldeia e pareciam pairar no ar como o vapor da manhã. Um homem levando seu cesto de penas e tinta à casa grande, para protegê-lo da chuva iminente, jogou-o à porta, contraindo sua face em estado de choque. Mulheres que preparavam mandioca para fazer beiju deixaram cair seus ralos e de soslaio olharam para a cabana. Na casa-maternidade a vovozinha, ainda ajudando a mãe cansada, acenou com o punho ameaçador:

– Não mate esta criança!

Eucá inclinou-se mais para a pequenina figura. Se fosse desferido um golpe para matá-la, Tumicá, quase a uma só voz. Levante-o do chão! – De alguma forma eles tinham perdido o medo dele.

Tumicá permaneceu em pé, desafiante. Ele olhava para um, depois para outro. Eucá levantou sua cabeça também para olhar. Abaixariam eles os olhos sob o olhar duro de seu padrato? Tornariam todos a sair um por um, como fizeram no ano passado, com medo de Tumicá? Eucá esperou um tempo sem fim pela resposta.

Mas o sol não caminhou uma largura da mão, depois de ter passado a chuva, para que Tumicá pudesse examinar uma dúzia de pares de olhos fixos nele, inflamados como fogo, e uma dúzia de rostos determinados para que ele não matasse o filho.

Foi Tumicá que, derrotado, abaixou a cabeça. Ele estendeu seu punho e com um violento murro deixou Eucá de bruços. Hesitante outra vez, por um momento, abrangeu com seus olhos todos os rostos em silêncio e viu que não se haviam abrandado. Tumicá abaixou-se levantou o nenê do chão e empurrou-o para a vovozinha. Depois caminhou a passos largos ao lado da cabana e enquanto andava falou com desprezo a Eucá:

– Se eu estivesse lá no dia em que você nasceu, eu o teria matado. Você não seria hoje assim carinhoso.

Uma mulher no meio do povo pegou o dente afiado da mandíbula do porco e cortou o cordão umbilica do nenê. A irmãzinha de Eucá tirou um pedaço fino de sua saia e amarrou o toco do umbigo. Ela pegou o bebê da vovó para lavá-lo; depois o devolveu e ajudou a mãe a ir para a rede. A mãe apertou o nenê em seu seio.

Somente dois ou três uai-uais permaneceram na cabana. Os outros saíram em fila depois de Tumicá para falar de sua maldade. A mãe de Eucá disse a vovó.

– Precisamos furar as orelhas do bebê e amarrar as faixas nas pernas.

A Eucá ela disse:

– Chamaremos o menino Iacutá, sucessor do nosso tio que morreu.

Eucá, de perpente uma criança, outra vez, começou a chorar…

– “Baixinho” – continuou sua mãe usando a expressão da mair terna afeição para uma criança – agora você tem um irmão.

Ele será um excelente rapaz, se não for destruído pelos maus espíritos.