A Câmara dos Deputados aprovou no fim de agosto o Projeto de Lei 1057/07, que visa combater práticas tradicionais nocivas em comunidades indígenas – como infanticídio ou homicídio, abuso sexual, estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica – e garantir a proteção de direitos básicos dos indígenas.

Também conhecido como “Lei Muwaji”, o projeto foi aprovado pelo Plenário depois de oito anos de sua proposição, por 361 votos a favor, 84 contra e 9 abstenções, e segue para o Senado. Segundo emenda feita pelo deputado Marcos Rogério (PDT-RO), órgãos como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), deverão usar de todos os meios para proteger crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas de práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica dos mesmos.

O artigo 227 da Constituição Federal diz que “é dever da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, o direto à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Entretanto, a prática do infanticídio acontece em pelo menos 13 etnias indígenas, principalmente as mais isoladas como Suruwahas, Ianomâmis e Kamaiurás. Crianças que nascem com alguma deficiência física, problema de saúde, filhos de mães solteiras, consideradas portadoras de má sorte ou gêmeas podem ser mortas por seus próprios familiares ou comunidade. A polêmica em torno da “Lei Muwaji” vem do questionamento a respeito da intervenção do “homem branco” em culturas e tradições indígenas – mesmo que essas pratiquem o infanticídio.

A HISTÓRIA DE MUWAJI

Muwaji, cidadã brasileira, amazonense e indígena da tribo dos Suruwahá, deu à luz a Iganani. Sua filha nasceu com paralisia cerebral e não podia andar, por isso, foi condenada à morte por envenenamento em sua própria comunidade. Para salvá-la, Muwaji procurou a ajuda de missionários evangélicos que atuavam na região, enfrentou a tribo e levou sua filha para São Paulo (SP), para receber tratamento com o “médico dos brancos”. Este e outros casos foram exibidos pelo Fantástico – programa de televisão da Rede Globo – em 2005. A reportagem ocasionou o encontro dos missionários Edson e Márcia Susuki com a advogada Maíra Miranda, que junto com mais algumas pessoas fundaram a Organização Não Governamental (ONG) ATINI – Voz Pela Vida, em 2006, e passaram a lutar pelos direitos dos índios e contra o infanticídio.

PROJETO DE LEI

Ainda no início da organização, em abril de 2007, no Dia do Índio, o Projeto de Lei Muwaji foi proposto através do deputado federal Henrique Afonso, na época parte do PT-AC. Segundo a advogada Maíra, a intenção do grupo era levantar uma discussão sobre o tema. “A gente queria fazer barulho, porque desde o início o nome “ATINI” significava voz. O assunto sempre foi silencioso e isso precisava ser debatido. Todos negavam que existia o infanticídio, até o governo”, afirmou.

Uma das críticas ao projeto é que a lei fala sobre algo que já existe, que já está no código penal. Maíra não nega. “O Projeto de Lei veio para afirmar que direito a vida é para todo mundo, sem exceção. Parece óbvio, mas temos que falar, porque, para os relativistas, a gente tem que ficar repetindo o óbvio”. Uma profissional de saúde que atuava em comunidades indígenas onde ocorria a prática do infanticídio contou à advogada que virava o rosto para não ver as crianças morrerem, porque não podia fazer nada. “Muitos disseram que eram impedidos de agir, porque era interferência. As pessoas acreditavam que havia uma lei, no caso especifico de indígenas, que os impedia de intervir. Infelizmente, até hoje é difícil acreditarem que crianças indígenas são crianças, é como se fossem uma subcategoria”, relatou a advogada.

Esse é um dos motivos pelos quais a Lei Muwaji afirma que “é dever de todo cidadão que tenha conhecimento de situações de risco” para os indígenas, informar os órgãos competentes, “sob pena de serem responsabilizados nas formas de lei vigentes”, “tendo garantida a preservação de sua identidade, se assim desejar”. O texto diz também que “após apurados os fatos, preferencialmente acompanhados de estudos antropológicos e psicológicos, se constatada a disposição dos genitores, familiares ou do grupo em persistirem em práticas que coloquem em risco a vida, a saúde ou a integridade física dos vulneráveis, as autoridades competentes devem promover a retirada dos mesmos do convívio da família ou do respectivo grupo, e determinar a colocação em lugar seguro, observando as especificidades de cada etnia”. Assim como crianças não indígenas são retiradas do convívio familiar quando este apresenta riscos e, com tempo e acompanhamento, são feitas tentativas de reinserção na família, a proposta prevê que o mesmo seja feito no caso dos índios.

CONTRAPONTOS

Durante votação no Plenário, a deputada Jandira Feghali, líder do PCdoB, questionou a forma de denúncia proposta no Projeto de Lei. “Não estamos aqui defendendo assassinato, estamos defendendo a vida dessas crianças por uma mediação cultural. Do jeito que está aqui, vamos colocar a etnia inteira na cadeia, obrigando todos a denunciar o risco de algo acontecer”, discursou. Maíra esclareceu que existe algo chamado “inimputabilidade do indígena” – se ele não tem conhecimento da nossa sociedade, ele não é submetido às nossas leis – e que, por isso, “no caso dos indígenas, por causa da cultura, eles não seriam considerados omissos. No direito penal chamamos de erro de proibição culturalmente condicionado, porque a pessoa é tão condicionada naquela cultura, que ela não acha que aquilo é errado”.

A antropóloga Marianna Holanda afirma em sua tese de mestrado que “diante do que chamamos juridicamente de infanticídio, não cabe falar em infanticídio indígena”. Ela acredita que “o que há nessas aldeias são estratégias reprodutivas pensadas em prol da comunidade, e não de indivíduos isolados. Só um número muito reduzido de crianças acaba sendo submetido a elas. E são crianças com problemas que, mais tarde, impossibilitarão qualquer tipo de interação social.” O deputado Edmilson Rodrigues (Psol-PA) também é contra. Segundo ele a proposta é inconstitucional, porque “acaba negando o que está previsto na Constituição, a garantia dos povos indígenas à sua identidade cultural”. Os que são a favor da lei, argumentam que a preservação da cultura não pode vir antes do direito fundamental que cada ser humano tem à vida.  A advogada comentou que “os artigos 7 e 10 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [fórum permanente da ONU] protegem o direito à vida de crianças com deficiência. Costumes devem ser respeitados, mas apenas na medida em que eles não violem o Direito Internacional dos Direitos Humanos, significando que quaisquer práticas de infanticídio de crianças com deficiência seriam contrárias àquelas disposições e outras do direito internacional dos direitos humanos”.

Maíra Miranda compara o infanticídio indígena a outras práticas como a mutilação genital feminina na África, o casamento infantil, o infanticídio feminino na China e na Índia, a caça aos albinos, etc. Ela afirmou que “são ações baseadas em tradições, mas que violam os direitos humanos”.

Ananda Ribeiro / GNI – Agência de Notícias